Trechos de uma história sem fim

Era uma noite fria de Outubro, as ruas suspiravam mistérios para quem possuísse ouvidos para ouvir.
-Até os espíritos estão com frio esta noite - disse um homem, anunciando sua chegada no bar. 
Todos olharam para aquele misterioso homem, ninguém nunca o tinha visto antes. Era um ser humano completamente estranho, naquela cidade desconhecida por 99% da população da Rússia. 
Oculta pelas imensas montanhas e protegida por um frio mortal, como se o vento gélido e as nuvens brancas tivessem consciência daquela cidade.
-O que o traz aqui, forasteiro?
O estranho apenas fixou seu olhar nos olhos febris do questionador. Sem dizer nada. Parecia enxergar toda a alma do habitante hostil. Em cada suspiro do forasteiro, era como se ele arrancasse as memórias do senhor de idade, bêbado. Talvez foram os quarenta graus de febre, mas depois de longos segundos ele arrependeu-se amargamente de ter perguntado, pois enxergou no homem de preto, asas brancas banhadas em uma energia mística.
-Memórias antigas, uma boa bebida e monstros perdidos - respondeu, finalmente, o homem de preto, que dirigiu-se ao bar e pediu um copo de uísque do mais puro.
Nesta cidade não existiam delegacias, hospitais, corpo de bombeiros e até mesmo igrejas. Os maridos ajudavam as mulheres a parir, ninguém mais. O sexo da criança não importava, cada um fazia o que desejasse. Doenças eram curadas a base de bebidas ou pelo tempo. Se uma casa era destruída num incêndio, outra era reerguida no lugar com a ajuda de todos, não por solidariedade, ninguém gostava de ver tristeza alheias, mas ninguém era feliz. Ladrões não existiam, pois depois dos quinze anos, ninguém desejava mais nada. Os sonhos eram mortos pelas fronteiras montanhosas e a força de vontade exterminada pela bebida. A cidade mais antiga do país. Não haviam crenças, pois nenhum dos moradores nunca viu o sol, as estrelas ou a chuva: Tudo era monótono, a cidade era espelhada nos olhos de cada um, frios, mortos, sem vida, distantes, ocos.
-Com certeza é a febre - sussurrou o questionador, descendo mais um gole de cerveja.
-Você é o primeiro aqui desde a fundação desta cidade - afirmou o garçom, servindo o uísque.
-Qual a sua idade? - perguntou o homem de preto, curioso.
-Em torno de cinco mil, aqui não costumamos marcar o tempo, nasci mais ou menos no ano 6. Meus pais ajudaram a fundar esta cidade.
-Ano 6? Qual ano você acha que estamos? - indagou, o forasteiro, gargalhando.
- Em 5678, por aí.
-Jesus Cristo, Buda, Hitler, Hiroshima… Estes nomes dizem algo para você?
-Não - respondeu o garçom, enquanto passava o pano no bar.
-Vocês estão mortos faz um bom tempo mesmo, não sei como o magnetismo da Terra não os petrificou, mas está na hora de sair dessa prisão mental, espíritos errantes - no instante em que terminou, ele bateu seu cetro, que estava escondido no sobretudo, no chão e todos moradores transformarem-se em caveiras vivas. Assustados, desnorteados, confusos e perdidos olhavam para os seus próprios ossos conhecendo a vida como ela é: eterna.
-Essa vila foi massacrada há milhares de anos - aumentou sua voz, o homem de preto - e nenhum de vocês, sequer um! Não entenderam que estavam mortos e continuaram alimentando com suas energias mentais essa cidade fantasma. Criando outros espíritos artificiais, que cresciam e não entendiam suas limitações. Agora vocês estão livres e podem partir. 
Ninguém se moveu. Depois de alguns segundos, todos voltaram ao que estavam fazendo, mas agora a bebida passava pelos ossos, congelando algumas partes e molhando o chão por outras.
-A prisão somos nós - sussurrou o forasteiro.
Então, o homem de preto foi para fora do bar, batendo duas vezes e afundando seu cetro na neve, limpou completamente o céu. O sol, novo naquela terra, queimou até o último laço energético que ligava aqueles espíritos ao local.
-O poder das estrelas - disse Auriel.

L.A.

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