Karma II

Sra. Francisca, todos os dias, por uma hora, fuça seu celular de última geração. Quer aprender a instalar joguinhos e enviar mensagens de bom dia, as de boa noite a Sra. Francisca sempre esquece, pois dorme pensando no próximo episódio da novela. Ela nunca aprendeu a instalar joguinhos, e volta e meia esquece como enviar mensagens de bom dia. A Sra. Francisca tem mais de duas mil fotos no celular, todas do seu jardim. Ela cuida de mais de duzentas espécies de flores, vegetais e frutas, mas nunca enviou nenhuma das duas mil fotos para ninguém. É seu segredo insolúvel e faz questão de enfeitar as fotos com diversos filtros. Sua árvore preferida é a limoeira, porque plantou com seu pai quando era muito pequena. “Os limões desta limoeira tem sabor de carinho” diz baixinho sempre que toma limonada. A Sra. Francisca não tem filhos, ela ama crianças e é a única do bairro a decorar a casa no Halloween só para distribuir doces para as crianças, muitos dos quais feitos com as frutas do jardim. Viúva há muito tempo, não vive de lamúrias. “Ele me amou e eu o amo por isso”. Sra. Francisca é estéril. Aos oitenta e sete anos o único sonho remanescente é ter dois filhos.
Numa quarta-feira feira de compras, sozinha como todos os dias de segunda a domingo. Sra. Francisca foi assaltada quando tentava tirar foto de um girassol no parque da cidade. Sentiu-se invadida, seu segredo se foi para sempre. Sentou ali mesmo no chão, desvalida e abandonada, sua única alegria era o girassol apontando para ela. “Você não está sempre apontando na direção do sol?” sussurrou entre lágrimas.

Matheus cresceu sem mãe. Nunca conheceu o amor materno na pele, apenas o vislumbrou em outras crianças, em amigos, em filmes, em todo o lugar, menos na sua própria vida. Seu pai tentava sempre fazê-lo feliz, porém, Matheus cresceu com um buraco irreparável no peito. Sufocante. Um buraco no qual não passa oxigênio, somente as lembranças da ausência. Infelizmente a dor transformou-se em revolta, enxergou na Sra. Francisca uma oportunidade para exteriorizar seu sofrimento. Imaginou que faria os filhos dela sentirem raiva ao saberem do assalto, que ela mesma sofreria com o trauma, por isso tratou de ser o mais ignorante e violento possível. Sra. Francisca percebeu que aqueles dois olhares jovens não eram de desejo material, mas de dor. Pura e simples dor. Após o roubo, Matheus vendeu o celular para uma loja e gastou o dinheiro com um jogo de videogame. Marcos, dono da loja, pagou pouco pelo celular, argumentando que teria que incluir uma nova embalagem e cabos. Mas colocou a venda a três mil reais, a preço de mercado o celular custa quatro mil. Seis meses da aposentadoria da Sra. Francisca.

Matheus percebeu tarde demais o valor real do celular. Ganhou apenas duzentos reais por ele, dominado pela raiva fez uma denúncia anônima contra o contrabando de Marcos. Após cinco dias, Marcos foi preso e todos os produtos roubados foram confiscados. Não havia nenhuma nota fiscal de nenhuma mercadoria. Eram 10h45m, um celular em especial chamou a atenção do investigador, a capa era a imagem de dois cachorrinhos com uma mensagem de bom dia. Infelizmente, todos os contatos foram apagados, e o chip destruído. Mas não a galeria. Não. Nem mesmo o bandido mais ganancioso do mundo ousaria apagar aquelas fotos. Na reportagem sobre o sucesso e eficiência da operação, o investigador decidiu divulgar as fotos em rede nacional.

Sra. Francisca estava esperando a novela começar naquela noite. Estava coberta por um lençol vermelho com desenho de flores rosas. Pela janela da sala conseguia, com a ajuda da luz da lua, apreciar sempre a existência da limoeira. Seu segredo passou em slides com a explicação da apreensão de fundo. Cada foto revelada ao mundo, uma lágrima caía dos seus olhos febris. Cada foto era uma obra de arte forjada com tanta sensibilidade e amor pela natureza, que apenas e exclusivamente naquela programação, a audiência do jornal das oito subiu picos inacreditáveis: Numa pétala de lótus Sra. Francisca capturou duas joaninhas fazendo amor. Alimentando-se de flores, um beija-flor azulado era acompanhado por outro amarelado numa única foto. Seu pé de limoeira em contraste com o pôr do sol. Tantas fotografias poéticas que seria impossível atribuí-las a um ser que não fosse um anjo. Sra. Francisca faleceu antes de assistir o último capítulo da novela. Dizem que Deus nos leva quando cumprimos nossa missão, eu prefiro dizer que a Sra. Francisca espalhou um pouco de amor em cada família naquela noite de lua cheia, e assim Deus a chamou para tirar fotografias do céu.

L.A.

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