Trechos de uma história sem fim

Ao encontrá-la teve que mordê-la para verificar se era de ouro ou de chocolate, se existia. A mordida revelou que em parte, ela era de ouro, pois além da existência comprovada, não era uma imagem originada de esquizofrenia, a pele tão macia que ele teve que rogar a Deus se ela era divinamente possível. Em contrapartida, também era de chocolate, com a ponta da língua ele sentiu uma doçura inexplicável. Ela trabalhava por mais de sete horas diárias numa fábrica de açúcar, as gotículas refinadas prendiam-se por toda a sua pele. Esse é o melhor trabalho do mundo para uma mulher - ele concluiria dias depois ao descobrir a ocupação daquela que ele jamais esqueceria, mas não passaria de uma mordida, não chegaria próximo de um beijo, nunca. Ela não sonhava com o amor, e não sorriu com a súbita mordida, deu-lhe um tapa e ele teve que a seguir para descobrir sua rotina e seus segredos, e continuaria em sua espreita por longos anos de contemplação.

Até o dia em que ele descobriu um câncer nas válvulas do coração, hermeticamente desconhecia as causas: Desejos intensos reprimidos por observar por anos a mulher que o fascinava. Três meses de vida foi a sentença, não sentiu medo da morte de imediato, não tomou consciência, naquele momento, da doença que possuía, sofreu antecipadamente de saudade por perder a oportunidade de observar sua mulher ouro e chocolate. Do consultório foi direto para o quarto e nele o seu corpo permaneceria até o dia em que a morte o abarcar, era rico e querido demais pelos seus familiares para passar seus dias sendo maltratado pela penumbra do seu próprio quarto.

A mulher açúcar logo soube, não apenas do ocorrido, mas também de qual hospital e qual quarto ele estava. Apenas homens inocentes pensam que uma mulher não sabe quando está sendo seguida, neste caso, ela permitia, pois tinha um certo fetiche por perseguição e não pressentiu perigo algum no olhar daquele homem. À primeira vista, pareceu fazer o que fez por clemência: Foi ao quarto dele, trancou a porta colocando a vassoura entre a fechadura e o chão, e retirou completamente a roupa. Ele logo identificou o cheiro e as nuances do corpo atrás da cortina circulando a cama.

- Somente olhe, por quanto tempo quiser, não toque – ordenou.

Ele observou, esticando os dedos, não para tocar, para desenhar no ar os traços dela sobrepostos ao que via. Não fez nenhum outro movimento voluntário. E ficaram assim, por muitos minutos. Entre olhares corporais e encontros diretos de íris com íris. Em seguida, ela desapareceu do hospital, do bairro, da cidade, do país. E nunca procurou saber dele, o destino daquele homem era inevitável. E de repente, dias depois do ato impulsivo, começou a sentir saudade de ser perseguida por ele, sentiu a mordida na bochecha como se acabara de acontecer, se arrependeu de não ter permitido ser tocada por ele e depois de trinta e três anos de vida começou, pela primeira vez, a sonhar com o amor.

L.A.

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