Sonhar

- Onde eu estive?
- Você não lembra? Passaram-se mais de oitenta anos...
- Parece que foi ontem, quando eu dormi.

Lembrou-se de tudo ao abrir os olhos completamente: Seus oitenta e seis anos em Sonho, em vida. Recordou da vibração da placenta da sua mãe quando alguém colocava a mão na barriga e a parabenizava. O esforço gigantesco para dar os primeiros passos com seus pezinhos desengonçados, a primeira palavra, no caso dele "Magia". O primeiro sorvete preferido de tantos outros que viria a saborear. O primeiro desenho rabiscado do que deveria ser um Mago e seus cinco dragões elementais. A primeira palavra escrita: Amor, de bilhões de outras que viria a escrever, rimar e harmonizar como Poeta e Escritor. Das primeiras paixões escolares que sempre o fazia esquecer da primeira palavra que escreveu. Da primeira conclusão absoluta de sua vida: Só sei que nada sei.

Os anos passaram feitos olhares desencontrados: Voltando jamais. Ele não percebeu que o Tempo não volta, pois se sentia sempre jovem, com mais energia do que as fusões nucleares que acontecem no sol. Ledo engano: Os beijos sem emoções foram esquecidos num único trovão silencioso rompendo a memória: Qual a diferença da lembrança da semana passada e a lembrança de um sonho desta noite? Sua ânsia por lembrar, por memorizar cada instante o fez começar a escrever sobre tudo e todos. A primeiro momento de forma desorganizada, mas aos poucos corrigiu sua própria Arte e descobriu que não se escreve para não esquecer e sim para lembrar, e há uma sutil diferença nisto.

Casou-se aos trinta anos de Sonhar: com uma mulher que carregava em si pequenas partes das bilhões de palavras que ele escrevera e escreverá. De repente, todos os beijos anteriores deixaram de fazer importância, se é que ainda possuíssem alguma. Descobriu que beijos ficam mesmo é na memória dos lábios, uma eterna sensação de pressão, de toque e que isso só é possível quando beijamos com amor e não por obrigação social e desejos carnais. Compreendeu enfim, que os lábios têm alma.

Foi pelos sessenta anos que a perdeu: Não a perdeu de verdade, pois nunca se perde o que se tem eternamente. Porém ele não sabia disto, mas tinha consciência de algo mais importante: Na felicidade vive-se a felicidade completamente, assim como é para ser na dor. Ele chorou em todas as luas cheias, no colo de seus filhos, deitado sobre as folhas amareladas do Outono, chorou comendo o bolo favorito dela que ele tanto detestava, mas naquele momento passou a amar. Na última Primavera da sua vida, pois ele deixaria seu Sonho no próximo Inverno, as lágrimas cessaram, e ele obteve a última compreensão de seu Sonho: O Amor é aquilo que de mais puro fica em nós e não o que vai com o outro.

- Foi tudo um sonho?  Eu estava em coma?
- Você Sonhou com a vida, não sonhou com ilusões. Estamos todos em coma, até mesmo aqui. Este é apenas o segundo reino do Sonhar. Quantos são eu não ouso sonhar.
- Ela está aqui...?
- Lá fora. Ela zelou por seu Sonho desde que Despertou primeiro.

Em cada quarto daquele prédio estava alguém Sonhando, e nos milhares de prédios ao redor daquele também. Nas milhões de casas no campo, e em outros milhões de prédios ao redor do planeta. Sete bilhões de Sonhadores.



L.A.

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