A Cidade Mais Calma do Mundo

Angarsk,
1986.

O bosque denso envolvia a cidade com árvores que pareciam observar quem ousasse deixar Angarsk. Todas as manhãs as chaminés de cada casinha suspirava café da manhã. Os habitantes, em sua maioria, eram idosos e todos se conheciam, não intimamente, as pessoas de uma cidade gélida tendem a ser reservadas. O frio encolhe e por vezes reprime sonhos e encontros. A cidade não tinha grandes empresas ou shoppings centers imensos. Viviam da pesca e do que conseguiam encontrar. Não aconteciam grandes conversas na praça principal, nada além de inúmeros “bom dia” e “boa tarde”, raramente um “boa noite”, pois a essa hora ninguém caminhava pelas ruas.
As 23h00m, pela primeira vez nos mais de mil anos de idade desta cidade, um grito forte e agudo despertou do coração do bosque e envolveu as ruas vazias, as moradias foram aos poucos invadidas: As pessoas que ficavam próximas do bosque tentavam colocar a cabeça de baixo do travesseiro sem sucesso, as do meio da cidade também, porém com mais exito e as que moravam mais longe murmuravam algo de dentro dos seus sonhos dos quais não se lembrariam pela manhã.
As 00h30m o grito continuava, sem parar, agora com um tom de desespero e mais alto. Então os moradores sentiram algo que não se lembravam da existência: tristeza. Não sabiam o que era pior, não conseguir dormir por causa do desespero interno ou pelo barulho distante e tão perto. Porque quando ouvimos um grito, somos sequestrados por ele. Alek foi o primeiro a sair de casa com uma fogueira, batendo em portas, e misteriosamente as pessoas já saiam arrumadas. O grito ficou mais intenso.
- Será um monstro!? – exclamou, Alewndra.
- Provavelmente é um lobo – concluiu, Czar.
- Lobos não gritam – disse Gennadi.
As 00h50m a praça principal estava cheia, todos estavam reunidos pela primeira vez na história de Angarsk. O grito parou por cinco segundos. As pessoas não se acalmaram, engoliram a seco. De alguma forma sentiam que a pausa era apenas para respiração, um grito desses não para simplesmente assim. Voltou mais forte ainda e no mesmo instante fez acelerar todos os corações presentes. No silêncio cada um conseguia ouvir as próprias batidas e as dos seus vizinhos.
- Temos que ir até lá! – gritou Feofilakt, sua voz foi um estrondo no silêncio, sua voz no fundo demonstrava medo e ação. 
Então ele começou a andar devagar, esbarrando nas pessoas estáticas e assustadas até chegar a frente da multidão. Ele não olhou para trás, sabia que se virasse e encarasse todos aqueles olhares profundos e com pupilas dilatadas, não conseguiria mais ir adiante: Sairia correndo ao ver o seu próprio medo refletido nos outros. Começou a andar em direção do bosque e todos começaram a segui-lo, aos poucos. A maioria para não serem deixados para trás, a outra metade pela curiosidade intrínseca do desconhecido.
O bosque não tinha uma entrada certa, mas pontos de abertura onde precisaria mais de sorte do que senso de direção, contudo, não era nada difícil seguir o grito. Estão todos hipnotizados. Aos poucos, conseguiram entrar no bosque menos denso por dentro. Totalmente na escuridão o grito parecia vir de todas as direções. 
-Encontrei! – anunciou Feofilakt. Sua voz não parecia expressar vitória.
Alguns deles tampavam os ouvidos, mais por desespero do que pela altura. Aquele som angustiante vinha de dentro de uma cabana. Ninguém nunca a viu, ninguém nunca veio tão longe.
- Cerquem a casa! – sugeriu Czar – não vamos deixar esse lobo fugir! – ainda com sua ideia estupida.
Calmamente Feofilakt se aproximou da cabana, a presença de humanos não pareceu diminuir a intensidade do grito, com a ponta de um enorme galho fino de árvore ele abriu a porta. O grito parou. As chamas da tocha brilhavam no chão molhado de lágrimas dentro da cabana, iluminando todo o ambiente. No canto, encolhido...
- É uma pessoa!!! – gritou alto Feofilakt.
Ainda se ouvia os gemidos dele. Não parecia estar machucado, não se encontrava sangue ou facas em nenhuma parte. Ninguém entendia o que estava acontecendo. As pessoas começaram a reclamar de terem ido tão longe por nada. Feofilakt ainda tinha medo, algo dentro dele não conseguia se acalmar, depois de 30 anos sem sentir dor, lembrou-se da morte da sua esposa como se fosse ela dentro da cabana.
- Está sentindo? – perguntou calmamente o homem de dentro da cabana. 
A voz foi baixa, mas todos ouviram. Atingiu todos porque era rouca de dor. Fez todos aqueles idosos se lembrarem das pessoas que perderam em suas vidas, muitas por causa da morte e outras pelo medo de dizer: Fique, ou pela falta de coragem de segurar alguém. Todas as palpitações reprimidas, todas as lágrimas engolidas pelos olhos, todos os sonhos desfeitos emergiram do fundo deles até o céu de seus corações.
As 2h30m a sabedoria chegou tarde demais para aqueles velhinhos, o grito não era de um lobo ou de um monstro. Era de um ser humano liberando todas as suas amarguras presas, desfazendo todas as correntes da tristeza e gritando até a garganta não aguentar mais, até isto se espalhar para o mundo. De repente o desespero voltou no olhar de cada um. Era pior que um monstro: Encontraram a si mesmos. A cidade mais calma do mundo.
Todos começaram a gritar, instantemente, num campo morfológico emocional, mas com intensidades diferentes, a intensidade não era porque um tinha sofrido mais que o outro, era apenas um fator temporal: Aos 90 anos de idade Alewndra encontrou em si o monstro que tanto temia encontrar na escuridão do bosque, mas não conseguia gritar o suficiente para libertá-lo, algumas dores precisam de outras vidas. A escuridão somos nós. Por três horas todos gritaram sem parar, alguns de joelhos, alguns deitados tentando encontrar estrelas mortas no céu. 
De dentro da cabana o silêncio permanecia, o homem estava de olhos fechados sorrindo, todos os gritos ali gritavam por ele, ele não precisava mais gritar. Seu sorriso era de perdão. Ele se perdoou e de repente sumiu, mas ninguém percebeu, suas lágrimas ainda brilhavam no chão da cabana.

L.A.

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