São os Olhos

Como um corpinho tão pequeno abarca tanta vida? Ela sorriu no exato momento em que me perguntei, parecia saber a resposta que se continha em sua alegria. Eu nunca saberia. Ela me escolheu. Por motivos que prefiro não comentar, o orfanato desconfiou de um homem solitário aos trinta anos querendo adotar uma bebê, foi um longo processo burocrático e entrevistas com pessoas próximas a mim. Ao final de um novo começo, ela se chamava Amilly
Não era do meu sangue, mas este é um conceito dos humanos. Nossa alma vibrava em sintonia, minha pequena filhinha. Desde os meses primeiros me conquistava todas as manhãs com o seu sorriso, mesmo a frauda causando arrepios nos pelinhos do meu nariz. Quando Amilly passou a engatinhar, comecei a ajudá-la, todos os dias, a andar. Era colocar um biscoito do outro lado da sala que ela praticamente corria, e foi assim que ela aprendeu a andar e nunca mais parou: corria atrás do rabo do nosso cachorro, e nosso cachorro corria atrás dela. De uma forma misteriosa, ele parecia sorrir também. Amilly fazia todos sorrirem.
Sua primeira palavra foi “papai” e a segunda “Bardinho”, o nome de nosso cachorrinho, que tinha a mesma idade de Amilly. Eu estava rodeado de crianças, na soneca da tarde ela fazia de Bardinho um ursinho de pelúcia, e aos cinco anos fez eu comprar apenas vestidinhos para ele, logo a ensinei a ler e em sua inocência tentou ensinar Bardinho a falar. Aos treze anos ela já tinha lido todos os livros da nossa biblioteca – por vontade própria, inclusive os em inglês. Mas não perdia o sorriso, jamais.
Aos quinze anos ela estava com a energia máxima da adolescência, Bardinho cansado não mais reagia aos estímulos externos, mas sempre que Amilly retornava do colégio ele permanecia ao lado dela, era o único movimento que ele fazia, as vezes ignorava a comida, mas não ignorava Amilly. Foi o primeiro contato dela com a morte, com a irreversível perda de um amigo. Ela mudou naquele dia, me pediu permissão para começar aulas de piano, permiti e comprei um piano também.
Era a única coisa que ela fazia, tocar piano. Todos os dias, e em alguns momentos de madrugada. São os olhos – percebi – ela está em luto. Aos dezoito anos eu revelei que ela é adotada. Ela sorriu, como sorriu no berçário quando a vi pela primeira vez, e disse: Eu já sabia. Somente após 18 anos eu percebi o que seu sorriso dizia: Eu te amo.

L.A.

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