Apartamento em Frente ao Bar

Seus olhos demonstravam o quanto de vida faltava nela
Seus gestos eram inconscientes, e ela sabia disto
Era toda errada, fingia-se de puta e conseguia me iludir
Era sensual sem ser vulgar, fumava sem parar
A fumaça a envolvia enquanto servia
Ficava a observá-la de fora do bar que ela trabalhava
Mal sabia de minha existência
Os homens que tentavam tocá-la
Levavam um soco que jamais esqueciam

Quando terminava seu expediente
Ela andava pelas ruas escuras sempre de cabeça baixa
Não por medo, era outra coisa, que eu nunca soube
Não parava de fumar, quando sentia sede bebia uísque
Nunca mostrou dor, mas seus olhos eram sempre tristes e vazios

Nunca soube se ela tinha casa ou apartamento
Estava sempre a andar por aí
Sem se importar com nada ou alguém
A segui por muito tempo, ela nunca me notara
Ou talvez, nunca se importou comigo também

Ela foi meu mistério por anos
Desapareceu igual como apareceu
Nunca soube seu nome, quando perguntava para alguém
Cada um dizia um nome diferente, alguns tinham medo
De falar sobre ela, ela sempre me pareceu intocável

Os anos passaram, as lembranças sempre vagavam

Hoje, ao olhar pela janela o bar que todo dia a via
Fico a tentar descobrir onde estaria, tal mulher tão inefável?

Ela, meu sutil e ao mesmo tempo fervente mistério, que em outrora sumira sem ao menos perceber-me, havia voltado, para o mesmo bar, nesta mesma rua, em frente do meu particular pequeno inferno literário. Talvez ela estivesse precisando de dinheiro, ou cansada de todo o miserável tédio que sua vida aconchegava-se, não sei, e na verdade, nunca saberei.
Antes mesmo de vê-la por completo, senti seu perfume, e foi este que me ajudou a lembrar e identifica-lá. Incrível, tantos anos e ela nem mudara seu raro perfume. Deus! Eu preciso lembrar-me que corpos enganam, ela deve estar totalmente diferente.

Desci exteriormente avulso, pelas escadas, até o primeiro andar
Mas por dentro, estava totalmente submisso às lembranças
Como eu ficara assim? Teria ela alguma bebida em seu perfume?
E de repente, quase que subitamente, lá estava ela...
Olhou-me,
Talvez, pela primeira vez, depois de todos esses anos de lembranças
Sim, ela estava diferente, seu olhar... Não era mais vazio e triste
Seu olhar estava entregue a uma espécie de pesadelo vivo

A única coisa que pensei foi: Será que essa mulher já sorriu em sua vida?
Embora, possuísse um corpo escultural
Homem algum naquele bar a olhava, pareciam tristes, abandonados
Como se sentissem pela primeira vez,
O quão desprezível são suas vidas
Virei-me, e voltei para meu apartamento
Totalmente reflexivo, peguei uma garrafa de whisky,
Bebi tudo rapidamente
Mas nada conseguia retirar minha lucidez para com aquela mulher
Passei horas relembrando...
... Os anos de escavamento noturno de lembranças

A noite chegou tarde, - embora o dia pareceu envolto em trevas
O bar fechou, a mulher partiu
Será que ela voltará amanhã?
Mais uma noite tentando responder amarguradamente
Uma pergunta que apenas o amanhecer
Possui em suas entranhas,
A resposta.
Se acaso ela retornar, poderei eu, tentar falar com ela?

A noite cai em sangue mental

Não consegui, mentalmente, fechar os olhos
Depois de tantas horas acordado
Parecia haver areia neles
E quando lacrimejavam sentia o gosto de uísque

Comecei a ouvir os carros na rua, os ônibus
E as lojas abrirem, mas principalmente
O ranger que cobre a rua
Quando o bar abre, e possivelmente
Minha amada está lá...
Com certeza ela estaria, porquê não estaria?
Teria ela sofrido algum acidente?
E levada ao hospital?
Merda, eu não posso pensar o pior, desgraça
Ela já deve estar lá em baixo, claro que está

Levantei, e meus velhos ossos estralaram
Um por um, como se todo meu corpo
Tivesse dormido e apenas o coração
Sangrando por desespero
Permaneceu acordado
Joguei água na cara
E olhei-me no espelho
Eu estou mais feio que o próprio Diabo
Mas não me importa isso
Hoje farei contato com meu amor

Olhei o relógio, são 9 horas da manhã
O relógio nunca pareceu tão vivo
Com seu tique taque que mata
A falta de eternidade que carrego comigo

Quando abri a porta, a luz do sol
Logo tratou de ferir o resto de pupila carregada de areia
Quando a luz passou, lá estava no outro lado da rua
Minha tão bela amada envolta por seus mistérios
De vermelho - como quase sempre

Eu, de boca aberta - espontaneamente
Atravessei a rua sem olhar para os dois lados
Sorte que naquele momento não passava carro algum
Senão teria eu morrido de amor - literalmente
Sentei em uma cadeira qualquer e fiquei a observá-la de longe
Eu era o único homem ali a fazer isso
Um forasteiro inocente eu era agora

Ela logo veio me atender - foi sempre competente
E pela primeira vez, depois de anos
Pensando nela, ouvi sua bela e amaciante voz
E tudo em minha vida começou fazer sentido
Ou pelo menos, ganhou um sentido

-O senhor deseja alguma coisa?
Ela deve me achar um velho, que merda - pensei
-Pode me chamar de Inácio, desejo você de corpo, alma e essência, com todo seu louvor de rosas ao vento em uma tarde de primavera.

Porra, fui muito intenso, ela vai me lascar um tapa na cara
Como pude dizer o que pensava para uma mulher?
Nunca se deve dizer o que se pensa para uma mulher!
Nunca! Jamais! De forma alguma!
Continuei:

-Mas não se traga em bandeja não... Por que nada nesse mundo é capaz de carregá-la, e muito menos definir um preço a tanta beleza e essência!

Misteriosamente, ela não me bateu como fizera com os outros homens
Foi lá para dentro do bar, fiquei me amargurando
Por ter sido tão intenso, as mulheres sempre tiveram medo de mim
Eu as afasto naturalmente...

Depois de alguns minutos, ela veio com sua bolsa
E vestida para sair, atrás dela, o velho do bar a xingava
Olhou para mim, e apenas disse:
-Vamos para a sua casa?
Sorri e ao mesmo tempo fique perplexo e paralisado
Ela percebeu minha falta de ação e me levantou puxando-me
Mas Deus! Que momento era aquele!
Atravessamos a rua como jovens despidos de responsabilidades
Misteriosamente ela sabia onde eu morava
Subimos juntos, ao chegar ela pegou uma garrafa de whisky
Enquanto, na cadeira, eu, a admirava toda bela
Ela sentou na cama, e bebia olhando para mim
Com aqueles olhos que de alguma forma
Eu sentia que liam minha alma e todas as minhas angustias!
Permanecemos um bom tempo apenas olhando um para outro
Até que, recuperado, de todo o álcool daquele instante
Levantei e fui em direção dela, a joguei na cama
Enquanto ela gemia apenas com meu toque em sua pele

Quando meus lábios aproximaram de seu pescoço
Estranhamente ela levantou e antes de eu dizer
Alguma coisa ou pensar em alguma coisa
Ela já estava fechando a porta e partindo

Milhares de pensamentos nasciam
Súbitas lágrimas começavam a tentar nascer
Mas somente um poema bem longe daquele momento
Eu comecei a escrever

O Poeta e a Humana

Minha visão poética enchia-se de inspiração
Ao debruçar-se sobre uma humana tão bela
A mente esvaziava-se, o momento tocava o coração

Mas ela, mesmo estando aqui, e tirando-me o ar
Importava-se apenas com seu próprio cabelo
Ou suas unhas, corria o tempo e ela tinha meu olhar

Sem saber, que os olhos de um poeta...
Admiram apenas o quê lhes causam poesia
Os quê subitamente lhes dão a vida

Quando a via, uma mulher em alma de flor...
Peito meu palpitava, um sentimento nascia
Mas quando ela partia restava apenas a dor...

Passava o dia esperando a noite chegar
Corpo beirando o precipício da ansiedade
Para vê-la novamente e com sua beleza suspirar

Porém... Nunca me percebera, nem minha paixão
Parecia sempre presa em seu mundo corporal
Mesmo de longe sempre acelerando meu coração

Não importava se o ônibus vazio estava
Ou perto de mim sentada ficava
Nem ao menos me olhava...

Tentei uma vez com ela falar, mas ao lado dela
Timidez em mim percorria, tudo paralisava
Quando toda a beleza duma harmonia via nela

Nunca antes tinha sentido tanta vergonha
Por mais de uma hora paralisado permaneci
E às vezes, ali de perto, ela me parecia tão tristonha

Estaria ela presa em sua própria tristeza?
Culpo-me até hoje por não conseguir perguntar
Seria uma maldição esta minha fraqueza?

Apenas ouvi naquele dia sua respiração
E a música vinda de seu fone alto
Do lado dela eu transpirava emoção

E num instante ouvi sua voz, "com licença"
Levantei e seu olhar tocou minha alma
E senti seu perfume como uma presença...

E fique em companhia da noite
Enquanto pela janela carros e carros passavam
E em minha mente, pensamentos por ela tardavam

Ao escrever a linha que eu desejava que fosse a última
-Um poema nunca acaba
Percebi as muitas garrafas de whisky que sobre a mesa estavam
Mal percebi que minhas angustias iludiam-me e roubavam minha lucidez
Assim como meus pensamentos que gritavam em minha mente:
-Seu incapaz!
Fechei as janelas do quarto sem olhar para o bar
Mas sabia que ela estaria me observando
Afinal, como sabera que morava aqui esta alma incapaz?
A escuridão chegou cedo em meu quarto
Deitei e adormeci ainda com os olhos inchados
Os malditos retorciam-se querendo chorar
Faz dias que não toco num copo de água

Acordei hipnotizado pelo teto rachado
Quando chove, as goteiras lavam minha alma
Enquanto durmo iludido por alguma não realidade

Aos poucos fui mexendo o corpo
E o coração, entendendo que a alma estava de volta
Tratou logo de liberar toda a dor
Que pela noite conspirou contra mim

-Um instante arranhava o muro construído por antigas tristezas. O som do fechar da porta ainda ressoava pela minha alma melancólica - disse baixinho - senti alguma boa lágrima que escapara de meus olhos desérticos, a idiota deve ter se espremido a noite toda para conseguir sair agora.

Desci sujo, mal dormido, seco por dentro e cheio de dor - por dentro e por fora.
Sentei na calçada de pedra cheia de ervas daninhas
Frenéticamente, não tirei o olhar dela enquanto trabalhava
Percebia que estava incomodada pelo seu jeito desconfortável
Pouco me importava, eu estava com raiva, agora iria atormenta-lá
Não demorou muito e ela veio em minha direção
Tentou me bater, mas antes levantei rapidamente
A segurei em meus braços e lasquei um beijo na sua boca
Todos do bar olharam de boca aberta
O movimento na rua parou
Ninguém ali nunca havia visto algo assim
Eram todos ali presos num comodismo cego
E um conservadorismo feroz
A soltei, e parti para meu apartamento
Não olhei para trás
Mas pelo rugir do vento
E o silêncio humano
Deve ter ficado parada

Pelos buracos de minha janela
E envolvido pela escuridão
Observei a noite chegar
O bar fechar e minha amada esculpir a rua
Com sua presença marcante
Vesti o único sobretudo que eu possuía
Negro, me juntei à noite e a segui
Carregava um facão
Caso eventuais bandidos dessem o ar da graça

Por longas horas segui seu perfume
Até um hospital, Mario Covas
Antes de entrar, enquanto andava removi o sobretudo
Que caiu e ficou largado no chão - assim como eu neste mundo
Seu perfume era indistinguível

Movido pela raiva, a passos curtos
A encontrei num quarto
Pela janela a vi deitada
Enquanto a enfermeira a dava um coquetel de remédios
Assim que a enfermeira, gorda e de olhos mortos saiu
Entrei avulso e devagar
Ela me olhou e virou o rosto para o lado
Apaguei uma das lâmpadas - odeio claridade
E ela sorriu, ficamos amarrados em um silêncio
Sob uma cortina feita de penumbra
E então ela disse:
-Sou soro positivo, estava apenas te preservando.
Eu ri e aos poucos comecei a gargalhar
Aproximei-me dela e disse, com pausas, suspiros e com a mão em um de seus seios - adorava os seios dela:

- Nasci terminal, mas com uma doença diferente que me faz morrer todos os dias e algumas vezes morro várias vezes ao dia. Sou poeta, sem nunca ter desejado ser, os poemas são injeções de anfetamina, que não importa se estou sob a noite ou sob o dia, explodem algumas vezes tirando-me outras me dando a vida, que logo é tirada novamente. Perto de você sou outro, és meu antídoto, não, não me dá felicidade, mas a culpa não é sua, perdi a capacidade de senti-lá há muito tempo atrás e hoje caminho cheio de melancolia... A melancolia é a felicidade de ser triste. Como poderia me proteger? Se tudo nesta vida já me venceu?

Apaguei a ultima luz e removi sua roupa
Beijava sua boca e sentia o gosto de remédio
-Poético - sussurrei.

-Sou virgem - ela disse soprando
-Eu também - retruquei levemente
Ela finalmente beijou meu pescoço
E sob lençóis hospitalares fizemos amor
Peguei sua doença e ela pegou um pouco da minha...

-Inácio Bucowsqui (1982)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trechos de uma história sem fim

02/12/2023

Freedom