Duas Histórias

-Posso abusar de você?
-O quanto quiser.
-Quero outra história, ou um poema, ou uma crônica!
-Você nunca se cansa? Sobre o que? Você sabe… Sou péssimo com temas.
-O amor!
-De novo? É a quinta vez essa semana.
-Começa logo enquanto não amanhece, eu sei que você poderia falar sobre o amor por eras.
-Uma história então, o estilo eu escolho.
-Faz carinho em mim ao contar, quero sentir os choquinhos dos seus dedos.

Era uma vez…

-Sem era uma vez, quero algo concreto, sólido, mas sutil.
-Isso vai lhe custar muitos beijos.
-Eu sei.
Era 2004 e ainda existiam garotos inocentes, mas um em especial se sobrepõe a todos os outros. Miguel tem 13 anos e gosta muito da garotinha que senta a sua frente, Melinda.

-Que nome engraçado!
-Tem que começar com M para sentar perto dele, dã.

Ele juntou coragem por três semanas para este dia, coragem suficiente para três palavras e menos que cinco segundos. Subitamente, na troca de professores, ele se levantou, foi a frente de Melinda e disse: Eu te amo! Não foi em voz alta, mas todos escutaram e começaram a rir. Obviamente essa foi as únicas palavras que ele conseguiu dizer antes de se paralisar e se transformar num tomate.

-Parece você!
-Xiu.

Estranhamente, Melinda não ficou brava ou chateada, mas feliz. Morava com seu pai que raramente via, pois ele trabalhava até tarde, e sua mãe havia se transformado em estrela há muito tempo. Melinda não conhecia essas três palavras juntas e não sabia o que significavam, mas sorriu naturalmente ao ouvi-las porque seu coração bateu mais forte.

-Tô com sono, já está bom?
-Não! Tem que terminar! E mais carinho em mim enquanto isso.
-Eu t…
-Eu também.

Melinda não disse nada, Miguel ficou paralisado até o professor chegar e mandar ele sentar. Então, ele teve sua primeira paranoia pós-declaração de amor: Ela não me ama. Miguel não sabe interpretar sorrisos de garotas. Ao bater o sinal da saída, Miguel saiu correndo, foi o primeiro a passar pelo portão, e o primeiro a chegar em casa. Tudo que desejava era se distrair assistindo Dragon Ball Z.

-Dormiu?
-Só durmo no ponto final, continue. Quero intensidade.

O dia de Melinda começo reluzente, mas ao chegar em casa depois da escola, pela primeira vez seu pai estava em casa. Bêbado, bravo. Foi despedido, exigiu que ela fizesse comida embora tenha deixado inúmeros bilhetes para ela nunca mexer no fogão. Ela ficou parada, não sabia o que fazer. Então ele pegou o cinto e bateu nela, e a xingou com nomes que mais pareciam ser para seu ex-chefe. Em seguida pediu desculpas e a abraçou. Mas não importa quão forte seja, um abraço não apaga lágrimas derramadas.

-E agora como vou dormir? Isso foi triste.
-Dormirá no ponto final, esqueceu? Ainda não acabou, meu amor.

Melinda foi para seu quarto, juntou várias roupas, barras de chocolate e seu ursinho Ted. As 23h00m fugiu de casa. É uma cidade pequena, todos sabem onde cada um mora. Ela foi diretamente a casa de Miguel, pegou algumas pedrinhas e mesmo com o ombro doendo conseguiu acertar sua janela no segundo andar. Ao vê-la Miguel entendeu aquele olhar, foi como se um laço atingisse e conectasse ambos, ela sussurrou baixinho: Você ainda me ama? - seus lábios tremiam no frio do inverno. Miguel não conseguiu escutar, mas entendeu, era ótimo em ler lábios trêmulos e esperançosos.
Ele deveria ter levado ela para dentro. Porém, era outra criança. Organizou rapidamente sua mochila com muitos lençóis e frutas e fugiu com ela até uma casa na árvore que ele tinha construído no verão passado. Se abraçaram, e ele fez carinho nos machucados do rosto dela, com a intenção de fazê-los desaparecer. Fisicamente não funcionou, mas dentro do coração de Melinda tudo de ruim desaparecera. O amor é mais poderoso que um abraço. Em seguida, Miguel a abraçou e sussurrou que tudo ficará bem, e perguntou se ela gosta de maçãs. Ela disse que devem ser gostosas com chocolate. Duas semanas depois eles foram encontrados, abraçados e congelados. Um abraço com amor era tudo que ela sempre precisou.

-Triste, mas ao mesmo tempo bonito. Vem de conchinha, agora sim pode amanhecer, meu Poeta.

L.A.

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