Sobre a Vida, o Amor e os Anos.

A rodovia era minha única amiga, o roncar do motor me lembrava que o destino não estava ao meu lado. Qualquer lugar que eu encontrasse seria apenas mais um ponto de partida para outros caminhos. O rastro de fumaça deixado pelo escapamento da moto se misturava com os meus pedaços deixados pelo caminho. Os sentimentos nos fragmentam, conhecer o mundo nos constrói. Nunca vou enjoar das rodovias do interior a mercê de campos verdes e um céu parecido com um tapete inconstante cobrindo o mundo e se estendendo pelo horizonte sem fim. Observar e sentir o movimento das nuvens faz eu sentir como se tudo que eu precise está no que eu consigo ver e não no que eu posso sentir em memórias. Carp diem nunca foi tão verdadeiro.

A velocidade da moto funciona como um relaxante ou adrenalina mental. Posso deixa-la a uma velocidade confortável para contemplar a paisagem e questionar para onde vão os carros com tanta pressa. Ou acelerar tanto a ponto de sentir a vida escorrer pelos meus dedos e olhos, o fio da vida é muito frágil e pode ser cortado ou amarrado dependendo da força de vontade. A 200 km/h eu sou questionado: Para onde aquele cara vai com tanta pressa? A lugar algum. A própria Terra viaja a 107 000 Km/h em torno do sol. Na minha velocidade eu sinto apenas o forte vento sussurrando poemas que me encontram. Enquanto a Terra presencia a vida e a morte de estrelas.

Não há celular comigo, mas também não existe solidão na inspiração. Câmeras são desnecessárias aos meus olhos fotográficos, minha mente é o banco de dados da minha curta vida. E sempre terei o poder de repetir atos e o mundo os fará sempre serem tão novos quanto nuvens brancas recém criadas pelo calor do sol. Os meus músculos rígidos controlando meu corpo sobre a moto me colocam de volta aos tempos de academia, nos dias tristes era como levantar pesos com o coração e nos dias alegres faltava água e sobrava disposição, garotas com corpos sutis que o longo tempo ali estragaria suas pernas lisas e seus braços acariciáveis. Homens com o olhar de não saberem o porquê de estarem ali. E dias de chuva e frio, onde o ferro e a solidão me fazia suar.

O sono nunca foi mais forte que a minha vontade de permanecer acordado. Olhando para o horizonte a minha frente percebo que estou passando pelo último hotel de fácil acesso, um pequeno sorriso a desafiar a vida preenche meu rosto seguido por um pensamento: Nem mesmo a noite é o limite. E de fato não é, além do vento agora quase gélido a garoa deixa a estrada quase tão resplandecente como um longo espelho refletindo com cuidado o branco da lua cheia. Ao olhar para cima: As estrelas se contrastam com nuvens espessas. Tomara que chova eu penso, tomara que caia o céu eu desejo. E o que uma noite tão viva traz? Os amores mais vivos que já senti, é claro. Nesse ponto, já não machucam, não parecem intermináveis espinhos abraçando o coração, são apenas memórias tristes de saudades e carência. Embora de uma a memória seja feliz. Não sei se conheci o amor, mas com esta única talvez eu cheguei perto. E nesta conclusão de pensamento, a tempestade começa e os raios traçam e rasgam o céu.
As gotas grossas agora totalmente gélidas molham meu peito sem interromper o calor que sempre rege meu coração. O tempo não apagou a chama viva em mim, mesmo que por instantes tudo pareceu apenas soltar pequenas fumaças de dor, as lágrimas não apagam o fogo, apenas o deixam em combustão mais tarde. Lágrimas formam a gasolina interior, só é preciso sobreviver a elas. A 250km/h é perceptível que nesta estrada molhada qualquer deslize me levaria ao colo da morte. Porém, é apenas um pensamento de possibilidades que se abrem com escolhas e não o começo de um medo inútil que só me faria aproveitar menos o momento. Não tenha medo, apenas consciência.

Minha barba pesando o rosto me mostra o pesar do tempo sobre o corpo e a mente, as pessoas não mudam mas os tempos mudam e com isso o que se vê e o que se sente são coisas diferentes do que costumávamos sentir e pensar. O tempo não é um carrasco mas um anjo plasmado em ilusões, as quebre. Diminuo a velocidade a ponto de quase parar no encostamento, o fato é que estou numa estrada alta, e dela é possível ver as pequenas cidades distantes sendo engolidas pelas nuvens negras, mas permanecem rígidas, iluminadas e fixas. Os raios não param a ponto de quase fazer da noite dia. Estou ensopado, e nessas horas, meu banco de dados começa a vazar.

É inevitável tentar evitar o óbvio: Não somos feitos de carbono como diz a ciência, somos sim, constituídos de lembranças, sentimentos e pensamentos – sejam estes, do passado, do presente ou sonhando com o futuro, como diziam os poetas. Pois dentro de nós também há o futuro, mesmo que as expectativas mal formadas sejam diminuídas com a chegada do amanhã. Abro os braços, a moto segue sozinha, estou apenas em uma estrada, molhado. Na escuridão de minutos e no clarão de segundos, mas posso sentir tudo que já fui e posso ser, posso sentir a vida na vida e todos os pedaços que ficaram no caminho.

L.A.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trechos de uma história sem fim

02/12/2023

Freedom