Trechos de uma história sem fim

Lúcio completará vinte e sete anos em breve. Percebera que em algumas áreas da consciência fora longe demais, mais longe do que seus conterrâneos sociais, e que embora tenha a sensação de ter percorrido quilômetros, sente que seus dedos estão firmes no começo da montanha.  Aprendera tanto sobre o coração e a previsibilidade do comportamento humano, mas guarda perguntas indissociáveis de qualquer resposta. A verdade é que seus olhos ainda repousam na mesma aparência febril de quando foi liberto do orfanato. A revolta, a ânsia impreenchível pelo amor, estes sim não flutuam mais no mar do coração, foram engolidos pela antipatia feminina, pela desconsideração inerente às mulheres que tiveram seus corações destruídos por homem-crianças e perpetuam – sem perceber – a mesma destruição que as afligiram.

Escreveu tanto sobre a beleza feminina e mais ainda sobre o amor que esquecera de mencionar sua própria beleza, ou nunca percebera que um dia – quando a inocência ainda cutucava sua esperança infantil – houve amor. Um amor-miasma que rodopiava feito fumaça ao seu redor, um amor invisível que viajava além do seu peito. Um amor jovem e livre das mazelas e das expectativas da sociedade. Um amor que não nascera da pressão da sedução ou da beleza intoxicante do outro, não. Um amor sem causa e sem efeito, desafiando todas as leis da física, um amor que o preenchia por preencher. Perdeu. Perdeu quando sua atenção se desviou para o amor-desejo, para o amor-estético, para o amor que se consome e consome o outro. Perdeu.

Ao perceber este dolorido insight, sua mente tentou – sem sucesso – retornar ao passado, mas se apegou tentando inventar com o coração algo impossível de ser criado: uma máquina do tempo. E se conseguisse? O que diria para sua versão pequena e inocente? Diria para não se perder? Para não esquecer o amor? Diria para ter esperança? Não. Não conseguiria. Encararia seus próprios olhos infantis e permaneceria em silêncio, um silêncio ensurdecedor. Um silêncio-grito que quebraria os limites da sua própria sanidade. Sua versão criança perceberia com precisão absoluta os pensamentos insanos da sua versão futura, porque Lúcio fora sempre assim: enxergando no invisível as obras que foram tecidas em segredo.

Completarei 27 anos! – disse Lúcio ao um homem, de andar resoluto e olhar sereno. Recebeu um soco: como és jovem, meu amigo! – disse o senhor. O peso de vinte sete anos tornou-se, em milésimos de segundos, uma pena sendo levada pelo vento, pelo tempo, pelos pensamentos. O estranho disse sorrindo que aos vinte e sete anos estava jogando bola nas praias de Copacabana e a noite bebia com os amigos enquanto conversavam sobre futebol. Ele não olhava para o tempo, o relógio não importava, o caminhar era regido pelo movimento do sol e os sonhos construídos pela lua.
 
No peso daquelas palavras Lúcio sentiu nítida e clara a verdade que fugira das suas conclusões: preferiria morrer a viver mais vinte e sete anos. Mas tão clara eram as suas conclusões que tornavam tola e vã sua sabedoria: incontrolável, o tempo passará por suas entranhas assim como as flores nascerão, embelezarão o jardim, e morrerão sem broto e rodeadas de espinhos secos. Pior prisão que o passado, é a prisão das sensações de um presente falho. Enquanto Lúcio encarava a sua ilusão-verdade, seus olhos fixos no ar assustou o forasteiro, quando Lúcio voltou a si estava sozinho, o banco da praça estava frio, e o céu nublado trazia consigo a brisa da inspiração solitária. O parque fechará em breve. Ao levantar sente a dor de joelhos que permaneceram imóveis por horas. 

Ao levantar é fisgado – como um peixe bobo – pela inspiração. Poemas o rodopiam como assombrações agonizantes. Obsessores celestiais. Anjos caídos. Flechas de algum cupido preguiçoso demais para escrever ele mesmo. Uma mulher passa ao seu lado e o perfume do seu cabelo é uma injeção de pura inspiração, seus dedos involuntariamente escrevem no ar algo que somente ele consegue ler. NÃO! – ele grita para si mesmo. Ele não quer escrever. A mulher olha para trás, e o encara como se enxergasse um monstro e acelera o passo. É impossível parar os dedos. É impossível controlar. Senta-se no chão. Retira do bolso um pequeno caderno juntamente com uma caneta preta e escreve qualquer coisa:


Flores-de-mel? Ou Jasmim?
O que seu perfume fez de mim?
Um escravo dos sentidos?
Ou um homem com esperanças vis?

No clima frio de um parque desértico, um passarinho solitário canta brevemente, tentando anunciar a noite.

A neblina envolve o cântico do bem-te-vi
Minhas memórias nublam-se com a solidão
Tenho certeza: vi seus olhos imbuídos de medo
Na imensidão do seu terror, desejo-te apenas amor

Ele tenta parar. Seus olhos transbordam de inspiração, a inspiração que deveria estar nos dedos: os olhos também escrevem, e escrevem demais. As lágrimas pingam em suas mãos como um ato calculado pelo destino:

Escrever é uma arte profunda demais!
É como cair num poço sem fim
E ser engolido e perfurado por estrelas 
E eu não sei se isso é bonito ou se dói

L.A.

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